“Ô, mãezinha. Bate uma foto para
mim? Aqui. Bate aqui, de mim. Bem bonita, viu? Você guarda?”. Eis Verônica me
abordando pela primeira vez. Senhorinha de 53 anos, exalava o cheiro da
nicotina, com alguns poucos dentes na boca, meio maltrapilha, num perceptível
esforço de vestir-se bem com roupas já surradas, desgastadas com o tempo.
Angelical, sim senhores. Um rosto que se manteve firme e com uma áurea
infantil, quase inocente, em meio a tanto descaso e abandono. Suas rugas nos
cantos dos olhos se revelavam, emoldurando sua face pueril, quando via a foto
salva na tela do aparelho celular. “Olha, mãezinha, como fiquei bonita”. E me
pedia que escrevesse seus dados.
Foram mais de duas ou três vezes
que eu repeti seu ritual. Pego uma folha de caderno, deve ser uma limpa.
Escrevo seu nome completo. Ela me dita “Verônica B... V...”, e pede para que eu
não esqueça de pôr os pontos. A rua a que deveria se endereçar o papel é com W.
“Começa com W, viu, mãezinha? Escreve aí: Rua Wilson...”, e devo guardar o
papel para que os ladrões não o roubem. Me diz que foi abandonada pela mãe
ainda cedo, nunca a conheceu – e seus olhos se enchem d’água quando me conta –
mas mora com Shirley, que é boazinha e lhe dá comida, mas de vez em quando, lhe
rouba o dinheiro que guardou com tanto afinco. “Que amiga é essa, não é,
mãezinha?”.
Não sou a única escrivã de
Verônica, ela não preza a exclusividade. Pede a tantos outros e é menosprezada,
até ridicularizada. Sim, é claro que aprender uma língua e suas tenebrosas
declinações é mais importante do que dedicar cinco minutos a uma insana moça de
vestido. É claro que você vai desdenhar de sua presença, por que se deve dar
atenção ao que nem ouviu ela dizer? Ela interrompe sua gloriosa revisão
desesperada de vinte minutos antes de sua prova começar. Por que daria a
palavra a ela? Você precisa fazer a sua prova, despejar e reproduzir teorias
geniosas de destrambelhados machos de séculos passados. Todos estes que buscam
a utópica verdade e conceituação absoluta e atemporal de algo que é tão mutável
quanto quem a produz: a literatura. Então você resolve silenciar a sua voz e
fazê-la se afastar, na sua mais ridícula contradição, sucumbindo ao sistema
acadêmico que você pretende descontruir e criticar na sua próxima produção
textual. E agora, José?
Mas que despropósito, que
imaginação fértil e que inocência a minha em acreditar quando Verônica diz que
é formada em Música e que ganhou uma medalha. Por que deveria acreditar? Os
insanos são desconfiáveis, foi o que você me supôs nas entrelinhas.
A insanidade é uma forma de
autopreservação; devem ser mais felizes do que nós, inundados de rotinas e
responsabilidades, cegos e alienados, envoltos em nossa própria ignorância.
Nós, incapazes de praticar a empatia em relação ao outro, ignorando e
marginalizando a "insanidade" tão quanto as instituições das quais
tanto se cobra, atribuindo-lhe toda a carga de responsabilidade.
Qual responsabilidade você tem,
como ser humano, com o outro? Fantasiando ou não suas verdades, os insanos, as
Verônicas, envolvidos em suas memórias e rituais, de certo modo estão
resguardados deste sistema social, político e (des) humanitário ao qual você
faz parte e tenta, entre unhas e dentes, compreender e se desvencilhar. A cada
dia vocês abandonam cada vez mais Verônica e tantos outros em situação igual. E
de abandono em abandono, é uma folha nova a ser escrita com seu nome. Um ciclo
constante, vicioso e cheio de pleonasmo. Ela me disse, certa vez:
"Policial é bicho ruim, não é, mãezinha? Não quis tirar foto minha. Disse
que deixaria para amanhã. Mas amanhã eu não posso nem estar aqui, não é?".
Jhade Borges dos Santos
Gomes – Graduanda em Letras Vernáculas com uma Língua Estrangeira
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ResponderExcluirNossa! Fiquei realmente tocada.Já fui abordado diversas vezes por Verônica e parei para refletir o porque dela estar sempre ali. A imagem, o texto e o título representam bem está pessoa. Apesar da constante rejeição, ela segue sonhando. O trocadilho/analogia com a obra de Paulo Coelho, Veronika Decide Morrer, é bem interessante. A jovem que tinha "tudo" decide acabar com a própria vida, essa senhora sem "nada" vivifica cada momento de sua vida. Quem viveu mesmo?
ResponderExcluirIronia, subjetividade, crítica a um problema social. "Veronica decide ter esperança" é um texto que incomoda, destroi e reconstroi, além de relatar um problema geral, ainda que sob uma única personagem. Seria possível então colocá-lo como crônica-reportagem.
ResponderExcluirA autora também escreve muito bem
Que linda sua crônica, também já fui abordada por Verônica e fiz fotos suas. Gostei de ver um outro olhar sobre essa senhora, o seu olhar tão humano.
ResponderExcluirMuito linda a crônica, revelando empatia diante da invisibilidade dos supostamente insanos. No caso de Verônica, me pareceu que a fotografia é a maneira que ela encontra para se tornar visível aos estudantes, às instituições... para revelar sua esperança de acolhimento. Parabéns!
ResponderExcluirSensacional. Pude reavaliar meus conceitos sobre atitudes de pessoas como ela, pessoas preciosas.
ResponderExcluirUau! A crônica é de uma sensibilidade sem tamanho. Me trouxe reflexões incomodas, acredito que seja a intenção também. Penso nas verônicas que tão por aí buscando esperança no afeto, no acolhimento e não encontram, e quantas verônicas eu não enxerguei ou ignorei até aqui por algo que considerei mais relevante em algum momento.
ResponderExcluirÉ impossível ler e não lembrar das diversas pessoas que saem às ruas e abordam desconhecidos em busca de alento. Muitas delas que são ignoradas veementemente, mas que se tivessem pelo menos cinco minutos da atenção que procuram com certeza deixaria nos empáticos uma lembrança de anos.
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